Movimento Negro

O Dia da Consciência Negra é marcado por inúmeros eventos no país todo, os quais exaltam a importância desse povo para a construção da identidade brasileira. Porém, apesar de serem a maioria da população, os negros ainda sofrem discriminação diariamente em quase todos os setores da sociedade

01/11/2018 Especiais Carolina Padilha Alves Tiago Sutil

O território nacional, em sua totalidade, comemora o Dia da Consciência Negra em 20 de Novembro, data esta que foi escolhida devido ao dia de falecimento de Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes negros do Brasil, que lutou contra o sistema escravista e pela libertação de seu povo.

Zumbi foi um dos líderes do Quilombo dos Palmares, atual Alagoas, que com apenas quarenta anos foi assassinado pelo capitão Furtado de Mendonça e teve seus restos mortais expostos em praça pública. A abolição oficial da escravatura no Brasil, só aconteceu em 1888, mais de 190 anos após a sua morte.

A data foi oficializada em 2011, sendo considerada um ótimo momento para que algumas questões sejam abordadas, principalmente nas escolas, como o racismo ainda latente na sociedade, a inclusão do negro, cultura afro-brasileira, igualdade social, discriminação, entre tantos outros temas.

Segregação étnica no Brasil em 2018

É fato que, apesar de terem conquistado a liberdade, os negros não conseguiram atingir o mesmo padrão de vida que os brancos na sociedade brasileira após o fim da escravidão. É importante lembrar que não houve nenhuma assistência pós-abolição da escravatura, fazendo com que o povo negro, em sua maioria, continuasse trabalhando para seus patrões, já que não possuíam nenhum bem material em seu nome.

Uma parcela de afro-descendentes deslocaram-se para os centros urbanos do país, constituindo suas famílias e montando suas casas em áreas afastadas da elite, dando surgimento as primeiras favelas. Por consequência, os negros começaram a trabalhar em empregos considerados menos favorecidos, já que o homem branco tinha acesso facilitado as melhores vagas no mercado de trabalho.

Infelizmente essa realidade ainda continua vigente no Brasil. Apesar da população ser majoritariamente negra, totalizando 54% da população brasileira segundo o IBGE, os negros atuam em apenas 18% dos cargos mais importantes e correspondem a apenas 17,4% da população rica do país. Outro destaque vai para o índice de empregadas domésticas negras, que atualmente totaliza 80%, sem falar que os afro-descentes são 63% dos mais pobres e 69% dos indigentes brasileiros.

E mesmo assim, após toda a história comprovada e essas estatísticas dadas por fontes seguras, é comum ouvirmos pessoas dizendo que não existe racismo no Brasil, ou tratando como vitimismo as histórias que negros contam sobre momentos humilhantes que passaram durante a vida.

Além disso, é preciso salientar e resolver uma dúvida comum entre os cidadãos brancos, que é: Se existe o Dia da Consciência Negra, por que não existe o Dia da Consciência Branca? A resposta é simples: não se faz necessário ter um dia para celebrar o dominador, o opressor, o colonizador, levando em consideração que esse tem o privilégio do poder, da liberdade desde sempre e com milhões de oportunidades a mais do que o oprimido. O Dia da Consciência Branca é todo dia, justamente por serem os brancos que comandam as estruturas de poder há séculos e que, claramente, não enfrentou e não enfrenta os mesmos problemas diários que alguém com a pele escura.

O 20 de Novembro vem para celebrar uma luta que pertenceu somente a eles, e que, conforme os depoimentos que veremos abaixo, ainda se torna uma luta ser negro nos dias de hoje, mesmo pós abolição da escravatura.

A força da mulher negra

Selmari Souza é uma vereadora professora de Vacaria que, até chegar nessa posição, passou por muitas dificuldades em seu caminho. Ela recorda que, ainda criança, notou pela primeira vez o racismo acontecendo e, desde então, nunca mais calou-se para nenhuma situação preconceituosa.

A vereadora conta que, na infância,  observava diversas situações referentes ao preconceito, somente pelo fato da cor da pele. “Lembro que em um determinado clube nós só entrávamos para fazer a limpeza, já que não podíamos frequentar bailes e festas sociais. Os adultos tratavam com desprezo crianças negras e sempre ouvi muitos comentários infelizes e depreciativos, que entristeceriam qualquer ser humano”, relembra.

Selmari ainda comenta que acha um absurdo o fato de algumas crianças serem ignoradas ou sofrerem preconceito pelo fato de terem um cabelo diferente, assim como os jovens negros sendo marginalizados devido às condições limitadas de oportunidades. “Quando me tornei vereadora, a primeira coisa que me disseram foi “agora vê se alisa esse cabelo, né?” Eu só consegui responder que o meu cabelo não ia interferir na qualidade do trabalho que me propus a realizar”, relata.

Com um cargo público de grande responsabilidade em suas mãos, Selmari entende a importância de ser quem é, já que nos dias atuais é desafiador ser mulher, negra e fazer parte da realidade política, onde a  representatividade de mulheres é de apenas 10%. “No momento, recebi da população de Vacaria, a confiança no meu trabalho pelo voto. Ocupo uma cadeira no legislativo, onde não estou sozinha, represento crianças, jovens, mulheres e homens que acreditam que a política deve estar a serviço do bem comum. Sou infinitamente grata por esta oportunidade de pensar uma cidade com oportunidades e qualidade de vida para todos. Sempre vou lutar pela igualdade de condições das pessoas, independente da cor de sua pele”, afirma.

Conscientizando desde a infância

Débora Almeida é formada em Pedagogia há dois anos e leciona atualmente na Escola Bernardina Padilha, onde desenvolve um lindo trabalho com as crianças, conscientizando-as a respeito da discriminação de raça.

Por ser negra, Débora já passou por alguns momentos desconcertantes e indesejáveis, mas tira disso a força para continuar seguindo em frente e ajudando os seus pequenos aprendizes. “Quando eu peço para eles pintarem uma pessoa e digo para pegarem o lápis cor de pele, sempre é escolhido o amarelo queimado ou o salmão. Aí, coloco o marrom claro, marrom escuro, o preto e explico que todas aquelas opções podem ser utilizadas para colorir a pele do desenho. E isso acontece mesmo quando a criança que está pintando é negra”, conta a professora.

Outra situação que chama a atenção e que ocorreu há pouco tempo, foi quando Débora começou a largar seus currículos na escola, logo após se formar na faculdade, e em um dos lugares o atendimento que recebeu foi equivocado. “Cheguei, me apresentei e disse que havia ido entregar meu currículo. Antes de dizer para que vaga era, a mulher me respondeu: “Moça, infelizmente não temos vaga para limpeza aqui na escola”. Respirei fundo e expliquei que queria me candidatar para o cargo de professora”, relembra.

Débora já usou vários tipos de cabelo, incluindo black power e, até mesmo, alisou os fios em sua adolescência, para se sentir mais pertencente ao grupo. Quando resolveu assumir sua identidade e deixar natural ou fazer penteados afros, como as tranças que usa atualmente, escutou comentários absurdos, nos mais variados lugares que frequentou.

A professora orgulha-se em dizer que entrou para a capoeira há algum tempo, por influência de seu marido Marlon Lopes, e que essa atividade reforçou ainda mais suas raízes, sua raça e a convicção de que irá militar pelo resto da vida para ver, cada vez mais, uma relação de harmonia e igualdade entre os seres humanos.

Tire o racismo do seu vocabulário

O racismo é tão cultural e impregnado em nossa sociedade, que diversas expressões da língua portuguesa foram criadas em cima do preconceito, no intuito de diminuir atos ou coisas, sempre usando as palavras “negro” e “preto”. Dificilmente coisas brancas ou claras são entendidas como algo negativo, e isso não é por acaso. Um exemplo é a famosa “inveja branca”, utilizada para minimizar a atitude do invejoso, pois, se é branca, não pode ser tão ruim, correto?

Desde criança, ouvimos nossos familiares empregando esses vícios de linguagem, que passam de geração em geração e, muitas vezes, seus reais significados não são esclarecidos.

O professor carioca  Luiz Henrique Rosa fez um estudo sobre termos de cunho racista para seu projeto intitulado “Qual é a Graça?”, e então, selecionamos alguns deles para exemplificar:

  • A coisa tá preta;

  • Mercado negro;

  • Magia negra;

  • Lista negra;

  • Ovelha negra;

  • Serviço de preto;

  • Da cor do pecado - utilizada como elogio, porém remete a sexualização e erotização da mulher negra, que une-se à palavra “pecado”, com sentido negativo, principalmente em um país guiado pela religião como o Brasil;

  • Cabelo ruim;

  • Não sou tuas negas;

  • Denegrir.

Depoimentos:

“O ambiente escolar é um lugar muito cruel especialmente há décadas atrás. Estudava em uma escola predominantemente branca e negros como eu eram dois ou três em toda escola. Sempre me davam apelidos, mas o que mais me doía era o de capim por conta do meu cabelo! Tentava não dar bola, mas penso hoje em dia quantas outras crianças passaram por situações piores. Por estudar em uma escola do centro, minha mãe pedia para que eu olhasse os preços de produtos no supermercado que ficava no caminho de casa para ela comprar depois. Sempre que ia lá os donos ficavam me seguindo achando que eu iria roubar. Quando o supermercado estava cheio eles mandavam os funcionários me seguirem enquanto eu procurava os produtos para minha mãe. É difícil entender isso quando se tem 8, 9 anos. Até hoje nunca mais coloquei meus pés lá”. Juliano Fernandes

“Cabe ao afrodescendente a responsabilidade de provar que tudo que faz deve ser sempre o melhor e nunca falhar, por menor que seja o equívoco, sob pena de ser atribuída a culpa pelo fato de ser negro! Eu, particularmente, nunca sofri discriminação. Se sofri ,ficou imperceptível. Sempre prevaleceu o profissional que me tornei ao longo da minha vida. Me chateia um pouco quando ouço alguém usando  a expressão “coisa de preto” quando algum irmão comete uma incorreção. Para mim preto é cor e negro é raça”. Renato Rufino

Coleciono inúmeros casos de racismo, mas a maioria deles aconteceu no colégio e no comércio. Na minha infância, em sala de aula, a professora perguntou o que cada um gostaria de ser quando crescesse. Eu respondi que queria ser da Marinha. O colega ao lado me olhou e disse que, no máximo, eu conseguiria ser empregada doméstica devido a cor da minha pele. Já adulta, uma vez estava olhando uma calça em uma loja bem conceituada da cidade, e a cliente que estava sendo atendida ao meu lado me olhou e disse que aquela peça era muito cara e que eu não ia conseguir pagar aquele valor. No outro dia, voltei, comprei a calça e pedi para a vendedora, que ficou completamente sem jeito com a situação, que quando a cliente racista voltasse na loja, que contasse que eu havia, sim, comprado a calça.

Em outra ocasião, cheguei para comprar um celular e a vendedora, com cara de nojo, me mostrou apenas os mais baratos, sem eu ter dito qual a minha preferência de aparelho. Virei as costas, comprei o celular em outra loja e após chorar bastante, voltei lá e fiz minha reclamação ao gerente, que demitiu a funcionária. Essas humilhações absurdas não acontecem com pessoas brancas e é uma pena que, hoje em dia, ainda existam seres humanos tão preconceituosos no mundo”. Renata Fernandes.

“Quando meus pais se separaram, eu tinha aproximadamente oito anos. Minha mãe e eu nos mudamos para Caxias do Sul, o que na época além de ser uma novidade, parecia muito divertido. Não foi. Obviamente mudei de escola, e fazer amigos não foi fácil...tanto que não fiz! Meus colegas não gostavam de mim por eu ser negra. Descobri isso dolorosamente um dia em que uma coleguinha cochichou para uma colega que ficava comigo no recreio: “sai de perto dessa daí,” me olhando com olhos de rejeição. Passava os recreios sozinha, e nunca era escolhida para as brincadeiras, nem mesmo quando encenavam “Chiquititas”, que contava com algumas atrizes negras”. Aline Santos.

 

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